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quarta-feira, 30 de setembro de 2009

São Francisco de Assis: O Trovador de DEUS

Sabemos que S. Francisco, nos tempos da sua juventude, em Assis, era conhecido como o «rei das festas», promovendo o convívio associado à poesia, à música e ao canto. As serenatas e os jograis dos trovadores encontravam nele um dos representantes mais entusiastas.

Após a sua conversão, ocorrida em 1208, não abdica da sua sensibilidade artística. Existe um episódio curioso, na vida do santo, que ilustra a sua predilecção pela música, como prolongamento natural do seu coração enamorado por Cristo.

Nas Fontes Franciscanas, lemos no Espelho de Perfeição: «A suavíssima melodia espiritual que botava dentro dele jorrava frequentemente para o exterior e encontrava expressão na língua francesa, e a poesia dos murmúrios divinos ouvidos por ele em segredo irrompia em cânticos de júbilo nesta mesma língua. Outras vezes colhia do chão um pedaço de madeira e colocava-o sobre o braço esquerdo; com a mão direita pegava outro pedaço à maneira de arco e passava-o e repassava-o sobre o primeiro, como se estivesse a tocar violino. Fazendo os gestos próprios, cantava em francês ao Senhor Jesus Cristo» (EP 93).

Noutra ocasião pediu a Fr. Pacífico, que no mundo fora tocador de cítara, que fosse pedir uma emprestada para alívio das suas dores, quando fazia o tratamento dos olhos (cf 2 C 126).

Francisco exprimia a alegria do seu coração enamorado por Cristo, associando a poesia e o canto à pregação. Deu largas à criatividade, representando o despojamento de Belém, através do presépio de Greccio. Mas como se isto ainda não bastasse, e porque a sua pregação é de alcance universal, Francisco não se contentando em pregar aos homens, dirige também a sua pregação às criaturas irracionais, correspondendo estas à sua presença e pregação, tendo ficado célebre a sua pregação aos pássaros.

S. Francisco, em 1225, compôs o Cântico do Irmão Sol, junto do Mosteiro de S. Damião, onde viviam S. Clara e suas irmãs. Este texto foi composto não para ser lido, mas para ser cantado. Composto na língua do povo (dialecto da Úmbria), este cântico, de singular musicalidade, é considerado a mais antiga e a mais preciosa pérola da poesia italiana. De tal modo, que S. Francisco é considerado o primeiro poeta de Itália, tendo-lhe dedicando Dante Alighieri, mais tarde, uma generosa referência na sua Divina Comédia.

No Cântico do Irmão Sol ou Cântico das Criaturas, o santo começa por se dirigir ao «Altíssimo, Omnipotente e bom Senhor», ao Pai de todas a Criação, para, logo depois, abraçar no seu louvor todas as criaturas nossas irmãs: o sol, a lua e as estrelas, o vento e as nuvens, a água e o fogo.

Importa realçar que o Cântico do Irmão Sol brota da profundidade do coração enamorado de Francisco por Jesus Cristo, após dois longos anos de provação ou «noite escura» no cimo do Monte Alverne, onde recebera os Estigmas. Associando-se, assim, à Paixão do seu Senhor, S. Francisco experimentou o abandono dos seus irmãos, a doença e a ausência sensível de Deus. Contudo, numa noite, quase cego e tolhido de dores, o Senhor dissipa-lhe toda a dúvida e toda a treva, revelando-lhe a certeza da sua salvação.

Então, de um jacto, compõe o Cântico do Irmão Sol. A luminosidade deste cântico expressa a alegria dessa noite, socorrendo-se do mesmo sempre que outras «noites» procuravam erguer a sua «voz», como o conflito que opunha o Bispo de Assis ao Podestá da cidade e a proximidade da morte (cf LP 44; 100). Tanto numa como noutra situação, pediu aos seus frades que entoassem e prolongassem este verdadeiro Hino da Alegria franciscana, tendo-lhe acrescentado duas estrofes: uma dedicada àqueles que constroem a Paz e outra à Irmã Morte.

Em S. Damião inicia-se esse novo e inesperado canto de louvor perene, quais Laudes da nova Criação. Contudo, adivinham-se outros mais, quando lemos, na Legenda Perusina, que «Francisco, depois de compor os Louvores de Deus pelas criaturas, ditou também um cântico, letra e música, para alegria das Irmãs Clarissas do Mosteiro de S. Damião» (LP 45).

O Poeta-Cantor, colocando em prática a afirmação de S. Agostinho, segundo a qual «cantar é rezar duas vezes», extravasa mediante a alegria do canto todo o seu sentir. Muitas vezes, «indo ele de longada pelo mundo, meditando e cantando a Jesus, interrompia e esquecia a caminhada para convidar as criaturas todas a louvarem com ele o Criador» (1C 155).

Ainda assim, Francisco, cultivando a estética do Amor, subordina a beleza do canto e da criação à sintonia com o Criador, pedindo aos seus irmãos que na recitação dos Salmos não atendam «tanto à melodia da voz, quanto à consonância do espírito, de modo que a voz sintonize com o espírito e o espírito sintonize com Deus, e assim possam agradar a Deus e não, pela melodia da voz, encantar os ouvidos do povo» (CO 41-42).

Deste modo, Deus constitui a Fonte de todo o Louvor, de todo o Canto e de toda a Música que brota do coração enamorado de Francisco pelo seu Senhor.

Dos seus cânticos e jograis, irradia uma positividade que contrasta com os movimentos heréticos do seu tempo, mais predispostos a condenar do que a salvar. Francisco quer renovar a Igreja e a sociedade do seu tempo não pela condenação, mas pela exaltação da Bondade e do Amor de Deus, presentes no coração de cada homem, no mais íntimo de cada criatura e de todo o Universo criado pela mão de Deus.

Frei Nélio Mendonça, ofm

Extraído de http://www.ofm.org.pt/designio/pubartigosdetalhe.asp?reg=4 acesso em 28 set. 2009.

Ilustração: Visão de São Francisco / Carlo Saraceni. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Saraceni_-_Vision_of_St_Francis.jpg acesso em 28 set. 2009.


terça-feira, 29 de setembro de 2009

São Francisco de Assis, uma alternativa humanística e cristã

Leonardo Boff
O contato com Francisco produz uma crise muito profunda e salutar. Sua figura envolve os leitores dentro de um círculo luminoso no qual descobrimos nossa mediocridade e lentidão face aos apelos que vêm da verdade mais profunda do coração e do evangelho. Ele conduziu sua vida sempre a partir da utopia e a manteve viva como uma brasa contra todas as cinzas do dia-a-dia e a razoabilidade da história. Incorporou o arquétipo da integração dos elos mais distantes, historizou o mito da reconciliação do céu e da terra, dos abismos e das montanhas. Daí o fascínio que se irradia dele e a catársis humana e religiosa que ele opera.

Diante de Francisco descobrimo-nos imperfeitos e velhos. Ele aparece como o novo e o futuro por todos buscado, embora tenha vivido há 800 anos. Mas este sentimento é sem amargura, pois sua mensagem encerra tanta doçura que o medíocre se sente convidado a ser bom, o bom a ser perfeito e o perfeito a ser santo. Ninguém fica imune à sua convocação vigorosa e ao mesmo tempo terna.

Francisco em sua gesta nos coloca imediatamente diante do evangelho e do sermão da montanha. Tomou absolutamente a sério a mensagem de Jesus como se lhe fora dirigida pessoalmente a ele. Assumiu tudo ad litteram et sine glosa e procurou viver com coração generoso e alegre. Não queria saber de interpretações. Bem sabia que quase sempre as interpretações emasculam a força do evangelho. E o evangelho lhe era simplesmente a formula vitae.

Se procurou orientar-se sempre a partir do evangelho e não da sensatez da razoabilidade, não era, entretanto, um fanático. Por isso se abraça a vida evangélica mostra também o sentido de uma regra; se vive do carisma compreende igualmente a instituição; se se entrega às duras penitências, sabe também alegrar-se e ser com todos cortês; se assume uma pobreza radical, postula outrossim uma fraternidade extremamente sensível à satisfação das necessidades uns dos outros; se é rigoroso para consigo mesmo, mostra-se ao mesmo tempo compassivo para com o confrade que grita na noite: morior fame!

Sempre segurou firme os dois pólos, mas começando todas as vezes pelo pólo do evangelho. Quebrou sem receios as barreiras instituídas para assegurar a vida livre do evangelho. Por isso é que nele coexistem admiravelmente ternura e vigor, que resultam da tensão sustentada permanentemente entre o evangelho e a regra, entre o sermão da montanha e a ordem. Se houvesse apenas vigor, emergiria então a figura de um santo duro, inflexível e sem coração. Se houvesse somente ternura, projetaria a imagem de um santo sentimental, adulçorado e sem perfil. Ternura e vigor compaginando-se na mesma pessoa criam o sol de Assis, como diria Dante, sol que gera ao mesmo tempo luz e calor, sol cantado pelo Poverello como “belo e radiante e com grande esplendor”, mas também criam a lua com sua luminosidade amena e amaciadora de todas as pontas que ferem e fazem sangrar. Francisco aflora assim como um homem solar e lunar, integração feliz dos opostos.

Francisco faz ainda um apelo de inaudita importância para a nossa situação atual. Vivemos num mundo de objetos; tudo é feito objeto de troca, de interesse, de negociação, de falsificação, de mascaramento e de fetichização. As coisas mais e mais perderam seu uso humano direto e simples como satisfação de necessidades objetivas que devem ser atendidas coletivamente. Com sua pobreza radical Francisco postula uma radical expropriação, especialmente do dinheiro cuja natureza se resume em ser puro objeto de troca sem nenhum uso a não ser a troca. Inaugura, no exato momento de formação do espírito capitalista, assentado na troca, uma existência humana que se baseia unicamente no valor do uso: duas túnicas, um capuz, calçados para os que precisam, os instrumentos de oração e de trabalho. A ausência de qualquer excedente visa, limpar o caminho de todos os obstáculos para o encontro dos homens entre si em sua transparência de irmãos, servindo-se mutuamente como convém entre membros de uma mesma família. Este projeto pode parecer utópico e, de fato, o é. Mas a utopia pertence à realidade porque esta não se resume naquilo que é e pode ser medido, mas muito mais naquilo que nela é possível e pode ser no futuro. A utopia expressa as possibilidades todas da realidade concretizadas. Porque ainda não foram concretizadas, ela convoca para novas realizações, a superar o já feito e ensaiado na direção de formas mais plenas e humanizadoras.

A utopia de Francisco de uma fraternidade sem plus-valia e, por isso, não exploradora, anima as buscas modernas por caminhos de satisfação das necessidades coletivas com o menor custo social e pessoal possível.

A seriedade evangélica de Francisco vem cercada de leveza e de encanto porque é imbuída profundamente de alegria, finura, cortesia e humor. Há nele uma inarredável confiança no homem e na bondade misericordiosa do Pai. Em conseqüência exorcizou todos os medos e ameaças. Sua fé não o alienou do mundo nem fez dele um mero vale de lágrimas. Pelo contrário, transformou-o pela ternura e pelo cuidado em pátria e lar do encontro fraterno, onde os homens não aparecem “como filhos da necessidade, mas como filhos da alegria” (G. Bachelard). Podemos dançar no mundo porque ele constitui o teatro da glória de Deus e de seus filhos.

Francisco de Assis mais que um ideal é um espírito e um modo de ser. E o espírito e o modo de ser só se mostram numa prática, não numa fórmula, idéia ou ideal. Tudo em Francisco convida para a prática: exire de saeculo, sair do sistema imperante, numa ação alternativa que concretize mais devoção para com os outros, mais ternura para com os pobres e mais respeito para com a natureza.

Texto do livro de Leonardo Boff, São Francisco de Assis, Ternura e Vigor. Editora Vozes, 1981.

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/especiais/2008/saofrancisco_011008/sf_humanistica.php acesso em 27 set. 2009.

Ilustração: São Francisco em meditação / Caravaggio. ca. 1606. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:CaravaggioFrancisContemplation.jpg acesso em 27 set. 2009.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

São Francisco, como o vejo

Dom Aloísio Lorscheider, OFM

À medida que passam os anos, São Francisco merece maior atenção. Em nossos dias, sobretudo, com a redescoberta do lugar social do pobre na Igreja e no mundo, o interesse pelos ideais de São Francisco faz-se mais vivo.

O meu contato com São Francisco
Muito deve a Igreja no Rio Grande do Sul aos filhos de Santo Inácio. Comecei a conhecer São Francisco, quando, em 1934, entrei no Colégio Seráfico de São Francisco, em Taquari (RS). Passei no Seminário Menor oito anos. Foi neste período que foi aumentando em mim o conhecimento, a admiração e o amor pelo Poverello. Tínhamos no Seminário a Ordem Terceira Franciscana, hoje denominada Ordem Franciscana Secular. As reuniões mensais e o espírito que os nossos formadores, por seu exemplo e palavra, imprimiam à nossa orientação, ajudou muito. O exemplo e o ideal vividos com muito entusiasmo pelos meus formadores, padres e irmãos franciscanos holandeses, foram benéficos. Eles concretizaram para nós o Serafim de Assis. Mais tarde, o noviciado, os anos de preparação para a profissão solene, a graça de, na Itália, visitar os lugares mais queridos ao coração de São Francisco, concorreram para formar em mim uma imagem do Santo da Dama Pobreza e da Perfeita Alegria.

Características de São Francisco

1. A imagem de Deus

Sempre fiquei muito impressionado e atraído pelo amor quente e apaixonado que São Francisco dedica a Deus. Parece que no beijo do leproso ele entendeu, como Saulo no caminho de Damasco, a doação total de Deus a nós em seu Filho Jesus Cristo. Custou a Francisco não só descer do cavalo fogoso que no momento montava, mas muito mais do cavalo do orgulho e da vaidade com que ele queria conquistar o título de grande e nobre. Foi no caminho que a luz de Deus entrou mais forte em seu íntimo. Foi o beijo ao doente rejeitado, nada grande e nada nobre aos olhos dos homens, que fez a Francisco descobrir o enorme amor de Deus que nos dá todo o seu Filho: “Tanto Deus amou o mundo que lhe deu o seu Filho único... “(Jo 3, 16). É aí que aparece o “meu Deus e meu Tudo”. “Quem sou eu, quem sois Vós? Uma noite toda foi insuficiente para saborear esta realidade tão grande. Francisco embeveceu-se no amor divino. A transcendência cantou o coração de Francisco. Mais e mais ele se extasiava diante do Bom Senhor, do Altíssimo, do Sumo Bem, do Único Bem, de todo o Bem. E o que sentia ia-se tornando oração. Convém ler e meditar as orações que brotaram, espontâneas, desta alma toda repleta da imensa misericórdia do seu Senhor.

São Francisco ajuda-nos a redescobrir a verdadeira imagem de Deus e “a graça salvadora de Deus que se manifestou a todos os homens”(Tt 2,11). É nesta imagem bíblica de Deus, assimilada por São Francisco, que se deve procurar a sua devoção à Encarnação do Verbo (presépio), ao Santíssimo Sacramento, à Palavra de Deus, aos Sacerdotes e à Cruz do Senhor.

2. A sua Dama

Francisco viveu numa época conturbada. Fermentos de renovação dentro da Igreja; fermentos novos no mundo dos negócios e da política, onde a riqueza estava sendo vista como o grande valor da vida humana. Na Igreja é o tempo do Papa Inocêncio III. Tempo de muito poder e de muito fausto. Faziam-se sentir diversos movimentos de renovação a partir da pobreza. Infelizmente, tais movimentos queriam conseguir o seu objetivo colocando-se à margem daquele que por Cristo fora posto como Pedra, Pastor, Garantia de Fé.

No mundo dos negócios e da política, as lutas entre os grandes partidos de então, guelfos e de gibelinos, entre as comunas, desejando uma superar a outra em importância e força, entre as classes sociais, buscando os do comércio conquistar os privilégios da classe nobre. É o tempo fogoso da Cavalaria.
Francisco, por influência do próprio pai, estava metido nestas lutas de promoção. O “status” o atraía. Liderança não lhe faltava. Mas, na análise de sua pessoa, percebe-se que, no íntimo, outras forças o estavam trabalhando. Além da graça divina, que tinha os seus desígnios, uma sensibilidade muito forte em relação à realidade social e eclesiástica também jogava o seu papel. E foi assim que Francisco entendeu que o verdadeiro soberano era o seu Deus, que se revelara em Jesus Cristo pobre, pequeno, humildade. O importante não era ser “maior”, como ele com tantos do seu tempo pensavam, mas sim ser “menor”. Sem dúvida alguma a passagem bíblica: “Quem entre vocês quiser ser o maior faça-se o menor”(cf. Lc 22,26), mais tarde repetida aos seus frades, deve já antes ter ressoado no coração do Santo de Assis. Seja como for, Francisco se enamora tanto por ela, porque vê o próprio Jesus Cristo nos enriquecer com sua pobreza” (2Cor 8,9). A formação paulina, num contexto de comunhão de bens (esmolas) entre as Igrejas, torna-se ela luz para uma inteligência mais profunda do mistério de Deus que se comunica ao mundo por seu Filho Jesus, o Filho do seu amor (Cl 1,13). E Francisco nele se inspira.

Começa, na Igreja, uma redescoberta do pobre, precisamente num período em que a Igreja parece ter atingido a culminância do seu poder e de sua influência no mundo. Poder espiritual e poder temporal estavam firmemente enfeixados nas mãos de um Papa que se soubera impor a príncipes e reis, dando ao Sacro Império Romano esplendores nunca dantes vistos e vividos. E foi no coração deste grande monarca que Francisco coloca; o seu modo de vida evangélica. Ele nada mais quer do que observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, Evangelho que tem a sua conotação específica na vivência da pobreza. Pobreza não à margem da Igreja Romana, mas pobreza no coração da Igreja Romana, em obediência total ao Papa e seus sucessores. Quando Francisco prescreve isto a seus frades, já era o Papa Honório, mas quando Francisco começou era Inocêncio que dominava.

Esta atitude de São Francisco foi obra do Espírito Santo. Foi autêntica intuição evangélica de alguém que era todo poesia. As almas dos poetas são as que, sensíveis, enxergam mais longe.

Em nossos dias revivemos esta redescoberta evangélica do pobre. Partimos de uma realidade diferente daquela do século 12, porque, hoje, nos angustia a injustiça institucionalizada, a injustiça que na sociedade, se tornou estrutura, ao passo que então a riqueza dentro da Igreja e os anseios de grandeza temporal dominavam os homens. Então, como hoje, as resistências dentro e fora da Igreja não são poucas. Entretanto, a profética opção preferencial e solidária pelos pobres corresponde inteiramente ao ideal de São Francisco, porque responde completamente ao Evangelho. E Francisco outra coisa não queria do que o Evangelho em sua mais completa pureza, sem glosa, sem glosa, sem glosa...

O estilo de vida simples, sóbrio e austero que Puebla preconiza para todos os cristãos de nossos dias em identificação sempre mais perfeita com Cristo pobre e os pobres, exprime, sem ambigüidade, o que Francisco, já no século 12, sonhava e via como verdadeira renovação evangélica. Se hoje, partimos de outra realidade para a vivência a pobreza evangélica, o fundamento continua sempre o mesmo: Cristo que, sendo rico, se fez pobre; que sabendo não ser um roubo para Ele o ser igual a Deus, esvaziou-se, fez-se servo, fez-se em tudo solidário com os homens, obediente até a morte e morte de cruz (cf Fl 2,5-9)

3. A perfeita alegria

São Francisco é conhecido como sendo o São Francisco das Chagas, além de ser o São Francisco de Assis. As chagas do Senhor Jesus mostram outra faceta da rica personalidade de Francisco: um apaixonado pela paixão de Jesus Cristo, um apaixonado pela Cruz do Senhor. Tão grande a sua paixão que mereceu experimentar ao vivo na própria carne a paixão sobre a qual tanto meditara e chorara a ponto de ter ficado quase cego. O amor de Deus na Encarnação torna-se, para nós, o mais concreto possível na doação total que a cruz simboliza: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jô 15,13).

Penso que na mística franciscana da Paixão do Senhor se deva procurar o sentido mais profundo da perfeita alegria que os “Fioretti” nos retratam com forma tão viva e poética. Ser rejeitado pelos próprios irmãos, ser afastado do convívio deles como elemento perigoso, como perturbador da paz e do silêncio de nossa casa, e saber aceitá-lo sem querer mal a quem desconfia de nós, nos machuca, nos revolve na condição mais miserável, - é identificar-se com Jesus rejeitado, escarnecido, esbofeteado, carregado com a cruz, crucificado. A perfeita alegria, está, pois, na mais perfeita identificação com Cristo, o Servo Sofredor de Jahvé.

Parece que o mundo de hoje nos oferece inúmeras oportunidades para vivermos este capítulo da perfeita alegria. Numa época de renovação, exige-se muito espírito de sacrifício, muita renúncia, muita assimilação com a paixão e morte de Jesus Cristo, com a oração sincera: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”(Lc 23,34)

4. Homem livre

Este tríplice olhar evangélico de Francisco – imagem de Deus, Dama Pobreza, perfeita Alegria – fez de Francisco um homem livre, amarrado a ninguém, levando-o a redescobrir a pureza original das criaturas. Indubitavelmente, o Cântico das Criaturas expressa esta liberdade interior e exterior conseguida pelo Santo de Assis. Só uma vida inteiramente aberta a Deus e ao Irmão é capaz de dar à criatura humana o gozo da libertação, que conduz à liberdade pura e santa com que Deus nos criou.

Conclusão

O próprio São Francisco escreveu a conclusão. Dando aos seus seguidores o nome de FRADES MENORES, ele disse tudo. O ser “frade”, o ser “irmão”e o ser “menor”, o ser “pequeno”, o ser “humilde”, o ser “servo”de todos, exprime todo o ideal franciscano, com o seu fundamento em Deus, o único Absoluto, sem ídolos, em total doação. Se os filhos e filhas de São Francisco, nas várias Ordens, Congregações, Institutos, vivessem, ao máximo, este ideal, novo sopro evangélico renovador purificaria o ar da Igreja e do Mundo.

Texto publicado na Revista “Grande Sinal”, 1982.

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/especiais/2008/saofrancisco_011008/sf_vejo.php acesso em 27 set. 2009.

domingo, 27 de setembro de 2009

A paz na mística franciscana


Celebrações
Todas as novenas e
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Evangelização e Paz

Frei Celso Márcio Teixeira, OFM

Introdução
Um dos mais profundos anseios do coração humano é o anseio pela paz. Fundamentalmente, todas as utopias da humanidade - elaboradas ou não - se resumem no desejo de paz. A utopia que se chama cristianismo também é fundamentalmente um desejo de paz. E quanto mais distantes estivermos dela, mais sonharemos com ela; quanto mais violento for o mundo que nos rodeia, mais a desejaremos. Este desejo é como uma minúscula brasa que fica escondida sob um montão de cinzas, esperando que alguém venha soprá-la para que ela se manifeste em todo o seu brilho e calor. Perder a esperança e não crer nesta utopia significa apagar em si o sonho que dá sentido à vida; e apagar o sonho da vida é extinguir-se a si mesmo. Por isso, aqui vale o conselho do profeta Isaías: Não apagar o pavio que ainda fumega (cf. Is 42,3).

Ao longo da história, vários foram os profetas da paz que tentaram manter acesa, ainda que sob uma montanha de cinzas, a brasa da paz. Somente para lembrar os nomes de alguns: Isaías, o profeta da paz, elaborou a sua utopia, na qual ele via o lobo comer com o cordeiro (cf. Is 11,6-9); Jesus Cristo anunciou um reino que resumia todas as utopias do ser humano, "reino da verdade e da vida, reino da justiça, do amor e da paz"; Francisco de Assis, trovador e profeta, símbolo de homem reconciliado com todos os seres, desde a mais brilhante estrela do firmamento ao minúsculo verme que se arrasta pela terra; Mahatma Ghandi, o homem que pregou a revolução pela via da não violência.

O mundo atual, marcado pela cultura da morte, ainda sonha com a paz. Isto significa que o pavio ainda fumega (cf. Is 42,3). A sociedade movimenta-se de maneira pluriforme em busca da realização dessa utopia. Este contexto nos parece campo fértil para que franciscanos e franciscanas desenvolvam toda uma evangelização voltada para a paz. A inserção nos movimentos de paz será um dos lugares preferenciais de presença franciscana. Aí temos a tarefa de dar uma contribuição tipicamente franciscana.

Esta contribuição, a nosso ver, não pode limitar-se ao nível panfletário. Temos uma contribuição mais substancial a oferecer. Ela abrange dois pólos: Um em nível de reflexão, outro em nível de ação. Em nível de reflexão, temos toda uma espiritualidade que serve de fundamentação para nossa presença nos movimentos de paz; temos toda uma teologia a oferecer aos nossos interlocutores e aliados. Em nível de ação, devemos ter a coragem de abandonar nossas "pastorais" rotineiras e partir para uma presença mais ágil e significativa no meio dos pobres, dos excluídos, primeiras vítimas silenciosas de sistemas causadores de violência, de exclusão e de morte.

Portanto, é importante que tenhamos consciência de que nossa contribuição franciscana deve ser qualificada. Distribuir panfletos? Todo mundo pode fazer isto. Uma reflexão franciscana e uma presença franciscana de qualidade, ao contrário, é tarefa que cabe unicamente a nós.

1. Uma reflexão preliminar: A evangelização como quadro de referência do anúncio franciscano da paz
Normalmente, quando se escreve ou se fala sobre o tema da paz em Francisco de Assis, vai-se entrando imediatamente no tema, praticamente sem fazer alusão a um quadro mais amplo de referência. Começa-se a tratar da paz que Francisco pregava, como que desvinculando-a do conjunto ou amputando-a do corpo todo da atividade e da proposta de vida de Francisco. Por isso, o anúncio da paz corre o risco de ser compreendido como um apêndice, como algo que Francisco fazia ao lado de sua atividade evangelizadora, ou apenas de vez em quando, ou como um tema ao lado de outros. Está aí, a nosso ver, uma compreensão parcial (portanto, distorcida) do que Francisco entendia pelo anúncio da paz. Realmente, o fato de desvincular a proclamação da paz de toda a atividade (e espiritualidade) de Francisco não deixa de empobrecer o próprio conteúdo de sua concepção sobre a paz.

Segundo nosso modo de ver, o quadro de referência para o anúncio (e compreensão) da paz está na evangelização. Evidentemente, o termo "evangelização" é recente na teologia. Praticamente, só ganhou impulso e divulgação e relevância a partir da encíclica Evangelii Nuntiandi, do Papa Paulo VI. Mas a prática da evangelização é tão antiga como o próprio evangelho. Por isso, podemos atribuir uma terminologia nova a uma prática antiga (no caso, da Idade Média), conscientes de não estarmos traindo a verdade dos fatos.

A evangelização é o ponto chave para compreendermos a vocação de Francisco e de seus companheiros (por conseguinte, a vocação legada como herança a toda Ordem). Uma leitura mais comum, inclusive dos biógrafos da primeira hora, tem centralizado a vocação de Francisco na escolha da pobreza. Esta seria para muitos a ótica sob a qual deve ser contemplado todo o desenvolver da vocação franciscana. Nosso modo de considerar prefere ver na evangelização o pólo catalisador de todo o movimento franciscano desde as origens. De fato, após alguns anos de busca de uma resposta, vivendo primeiramente como eremita e depois como reconstrutor de capelas, Francisco sente-se tocado pelas palavras do Evangelho (1) que teria ouvido durante uma missa na Porciúncula. Tratava-se do texto do envio dos discipulos (Lc 10,1-11 ou Mt 10,1.5-15; em Mt trata-se do envio dos doze) para anunciar o Reino.

Ora, este texto do Evangelho, depois de descrever o envio dos discípulos na condição de pessoas despojadas (nada leveis pelo caminho), contém três elementos nucleares: a) a saudação da paz; b) a cura dos doentes; c) o anúncio do reino (esta ordem em Mt 10 está exatamente ao inverso).

Uma interpretação dicotômica poderia ver nestes elementos três fases da tarefa de evangelizar, a saber, a saudação da paz, como sendo uma introdução, a cura dos doentes, como uma preparação para a evangelização, e o anúncio do Reino, que seria a tarefa evangelizadora propriamente dita. A nosso ver, porém, estes três elementos constituem a própria evangelização. O conjunto todo é anúncio do reino. O reino de Deus só pode ser reino de paz, caso contrário não será reino de Deus. Por isso, a própria saudação de paz já é anúncio do reino, como também a cura dos doentes é anúncio de um reino sem males (cf Lc 7,18-23).

O primeiro biógrafo, mesmo com a tentação de interpretar a vocação de Francisco na ótica da pobreza (de fato, descreve primeiramente o despojamento de Francisco que troca o hábito de eremita por outro muito pobre e desprezível), passa em seguida a descrever a tarefa evangelizadora de Francisco: "A partir de então, com grande fervor de espírito e alegria da alma, começou a pregar a todos a penitência, edificando os ouvintes com palavras simples, mas com o coração nobre ... Em toda pregação sua, antes de propor a palavra de Deus aos que estavam reunidos, invocava a paz, dizendo: 'O Senhor vos dê a paz' (cf 2Ts 3,16; Lc 10, 4b). Anunciava-a sempre mui devotamente a homens e mulheres, aos que ele encontrava e aos que lhe vinham ao encontro. Por esta razão, muitos que odiavam a paz, com a cooperação do Senhor, abraçaram de todo coração a salvação juntamente com a paz, tornando-se também eles filhos da paz e desejosos da salvação eterna”(2).

A saudação da paz e a proposição da palavra de Deus, descritas por Tomás de Celano, remetem-nos imediatamente ao texto de Lc 10. Só falta o elemento da cura dos doentes. Esta constatação nos permite concluir que para Francisco a saudação e o anúncio da paz constituíam a própria evangelização, exatamente como ouvira do Evangelho. Na prática de Francisco, a evangelização inclui necessariamente o anúncio da paz. Em outras palavras: não se evangeliza, se não se anuncia a paz.

O Anônimo Perusino não narra o episódio da escuta do texto de Lc 10 na Porciúncula. Mas não desconhece que este texto fazia parte da origem da vocação de Francisco, pois ele coloca, logo após o despojamento de Francisco diante de Pedro Bernardone, a ressonância do texto do envio: "O Senhor conduziu-o pelo caminho reto e estreito, porque ele não quis possuir nem ouro nem prata, nem dinheiro, nem qualquer outra coisa (cf. Mt 10,9), mas seguiu o seu Senhor na humildade, na pobreza e na simplicidade de seu coração. Andando de pés descalços, vestia-se com um hábito desprezível, cingia-se com um cinto também muito barato" (3).

Embora o despojamento de ouro e prata, etc., fizesse parte de um texto dinâmico de envio a evangelizar, o AP prefere lê-lo na ótica da pobreza, desvinculando a pobreza do quadro da evangelização.

2. Evolução do conceito: da prática da pregação a um conceito mais amplo de evangelização
No entusiasmo de quem descobriu o sentido de sua vida, Francisco começa a pregar. Evangelizar significa inicialmente para Francisco dirigir-se ao povo, anunciar a palavra de Deus, lembrando sempre que o reino que ele quer anunciar é reino de paz. Por isso, insiste na saudação da paz. Como a saudação da paz fazia parte do envio dos discípulos, assim também ela faz parte de seu próprio envio.

Evangelização é, portanto, inicialmente compreendida como uma atividade ad extra, um dirigir-se ao povo. Dentro desta compreensão, podemos interpretar os dois ou três envios ou missões dos primeiros companheiros, antes mesmo da aprovação da regra:

a) Quando eles eram quatro: Francisco e Egídio foram à Marca de Ancona, os outros dois ficaram (4). Francisco não pregava ao povo, mas apenas exortava os homens e mulheres a fazerem penitências (5).

b) Quando eram seis: O envio é proposto como sua vocação: "Consideremos, irmãos caríssimos, a nossa vocação, porque Deus misericordiosamente nos chamou não somente para a nossa utilidade, mas também para a utilidade e salvação de muitos" (6). Eles anunciavam a paz em suas pregações(7).

c) Quando eram oito: No envio constava explicitamente o anúncio da paz: "Ide, caríssimos, dois a dois pelas diversas partes do mundo, anunciando aos homens a paz!” (8).

Um conceito de evangelização, que inicialmente se identificava com a atividade ad extra de pregar o reino, a penitência e a paz, começa muito cedo a alargar-se em compreensão. O anúncio exigia uma coerência de vida por parte dos evangelizadores. Quem prega o Evangelho é convocado à coerência, isto é, a colocar em prática, a fazer a experiência, a viver os valores que proclama com a voz.

É digno de nota que, após as primeiras missões evangelizadoras, quando se tratava de colocar por escrito numa regra essa vocação dada pelo Senhor, a vocação dos frades menores não foi expressa em termos de pregação ou de anúncio do Evangelho ou do reino, mas em termos de vida, de viver. Deste modo, já na primitiva regra apresentada a Inocêncio III para a aprovação, a vocação dos frades menores vem assim explicitada: Esta é a vida do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo que Frei Francisco pediu ao senhor papa ... (9). Evangelizar é pregar e proclamar, mas é também fundamentalmente viver os valores evangélicos proclamados.

Assim, é dentro da compreensão da coerência entre a proclamação e a vida que se entende a exortação de Francisco, quando enviava os frades em missão evangelizadora: "Assim como proclamais a paz com a boca, assim em maior medida tenhais em vossos corações a paz, para que ninguém por meio de vós seja provocado à ira e ao escândalo; mas todos, por meio de vossa paz e mansidão, sejam novamente chamados à paz e à benignidade" (10).

Detalhes preciosos da Regra mostram a compreensão ampla do conceito de evangelização. Ao tratar do modo como devem os irmãos ir pelo mundo, Francisco não ensina o que devem pregar, mas o modo de comportar-se que convém ao evangelizador: "Aconselho, todavia, admoesto e exorto a meus irmãos no Senhor Jesus Cristo que, quando vão pelo mundo, não discutam nem alterquem com palavras (cf. Tm 2,14) nem julguem os outros; mas sejam mansos, pacíficos e modestos, brandos e humildes, falando a todos honestamente, como convém. E não devem andar a cavalo, a não ser que sejam obrigados por manifesta necessidade ou por enfermidade. Em qualquer casa em que entrarem, digam primeiramente: Paz a esta casa (cf. Lc 10,5). E, segundo o santo Evangelho, seja-lhes permitido comer de todos os alimentos que forem colocados diante deles (cf. Lc 10,8)” (11).

Não nos passe despercebida a ressonância do texto do envio (Lc 10) que está sempre como pano de fundo da vocação dos frades menores. Presente e indissociável sempre a proclamação da paz, porque não existe uma evangelização sem a proposta de paz. Aliás, todas as atitudes que Francisco propõe são a própria proclamação da paz com o modo de viver. Em outras palavras, a vida dos irmãos devia ser o anúncio vivo do Evangelho da paz: em formulação negativa: não discutam nem alterquem nem julguem os outros; em formulação positiva: sejam mansos, pacíficos e modestos, brandos e humildes, falando a todos honestamente como convém ... e digam "paz a esta casa".

No confronto com as autoridades eclesiásticas constituídas, os novos evangelizadores (os que proclamam o Evangelho com a palavra e com a vida) só serão verdadeiros evangelizadores, se mantiverem a paz no coração:

"E embora quisesse que [seus] filhos vivessem a paz com todos os homens (cf. Rm 12,18) e se apresentassem a todos como pequeninos, no entanto, ensinou-os pela palavra e mostrou pelo exemplo a serem humildes, mormente com relação aos clérigos. Dizia, pois: 'Fomos enviados em auxílio (cf. Sl 69,2; Dn 10,13) dos clérigos para a salvação das almas (cf. 1 Pd 1,9) ... Sabei, irmãos - disse -, que a Deus é muito agradável o fruto das almas (cf. Sb 3,13) e que isto se pode conseguir melhor com a paz do que com a discórdia dos clérigos ... Se fordes filhos da paz (cf. Lc 10,6), havereis de lucrar o clero e o povo para o Senhor, o que o Senhor julga mais agradável do que lucrar só o povo, [depois de ter] escandalizado o c1ero” (12).

No fundo desta exortação está a seguinte compreensão: a evangelização (pela palavra ou pela vida) somente será eficaz, se for, ao mesmo tempo, anúncio de paz. Uma evangelização desvinculada da paz não é evangelização. A verdadeira evangelização é necessariamente proposta de paz.

Igualmente precioso é o modo de os irmãos irem para o meio dos sarracenos e de outros que não têm a fé cristã. Francisco prescreve dois modos de evangelização: a evangelização pelo modo de vida (a própria vida é o anúncio) e a evangelização pelo anúncio explícito (pela palavra). Novamente as exortações de Francisco para o primeiro modo de evangelização são propostas de paz (e toda proposta de paz é proposta do reino): "não litiguem nem porfiem, mas sejam submissos a toda criatura humana por causa de Deus e confessem que são cristãos” (13).

O fato de confessarem que são cristãos é, freqüentes vezes, interpretado como coragem de apresentar-se ao martírio, pois o fato de confessar-se cristão entre os sarracenos, devido à inimizade existente entre cristãos e sarracenos, era interpretado como uma oferta do pescoço à espada (14). Não vemos, porém, esta interpretação como o sentido primeiro. O confessar-se cristão seria, segundo nossa maneira de interpretar, uma forma de dizer: "Estes valores que estamos vivendo são simplesmente o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo". Portanto, no confessar-se cristão, está contido fundamentalmente um modo de evangelizar. Apenas secundariamente, poderia ter o sentido de disposição ao martírio.

Percebe-se, então, que o conceito de evangelização, inicialmente interpretado por pregação, evolui para uma compreensão mais abrangente que envolve não apenas o anúncio pela palavra (pregação), mas também a proclamação pelo modo evangélico de viver. A paz, por identificar-se com a própria evangelização, também não é somente algo que pregamos ou propomos aos outros, mas antes um valor evangélico que coerentemente procuramos cultivar no coração.

3. Tratados de paz: formas concretas de evangelização (força política da evangelização)
A crônica de um frade dominicano chamado Tomás de Spalato traz, entre seus relatos, um episódio muito significativo para compreendermos a evangelização de Francisco. Corria o ano de 1222. Tomás de Spalato, estudante que morava no Studium em Bolonha, teve oportunidade de ouvir uma pregação de Francisco. Limitemo-nos a citar apenas o que no momento nos interessa. Assim ele escreveu:

"Na verdade, todo o tema de suas palavras visava a extinguir as inimizades e a reformar os pactos de paz. O seu hábito era sujo, a pessoa desprezível, e a face sem beleza; mas Deus conferiu tanta eficácia às suas palavras que muitas famílias dos nobres, entre as quais o furor desumano de antigas inimizades eclodira em muito derramamento de sangue, foram levadas de novo ao pacto de paz" (15).

A primeira coisa que se deduz deste breve relato é que a preocupação de Francisco pela paz era uma constante em sua vida. O anúncio da paz não era algo dos inícios de sua vocação, mas acompanhava a evangelização de Francisco ao longo de sua história. E nem podia ser diferente, pois anunciar a paz para ele era anunciar o reino e vice-versa. De novo, convém salientar que a paz não é apenas um tema entre outros da evangelização, mas é a própria evangelização. E a evangelização só é verdadeira evangelização, se anunciar e visar à construção da paz.

Outro elemento digno de nota é que as palavras de Francisco visavam "extinguir as inimizades e reformar os pactos de paz". Tratava-se de um problema muito concreto, o das inimizades e guerras entre famílias. Evangelizar não é abstração, mas é confrontar-se com problemas concretos, é inserir-se em contextos históricos e aí apresentar o Evangelho como opção ou alternativa para situações que parecem insolúveis. Nesse confronto e inserção, evangelização significa deixar que o Evangelho ilumine as pessoas e coisas envolvidas. O Evangelho é que ilumina tudo e convoca todos à conversão (e à paz).

Após a pregação de Francisco, "muitas famílias foram levadas de novo ao pacto de paz". Deu-se, portanto, uma transformação na vida da cidade. Embora a evangelização não se identifique com nenhuma política partidária, no entanto, ela é profundamente política, tem forte incidência na vida e na organização da sociedade, pois ela apresenta aos cidadãos os valores fundamentais da pessoa humana, valores que muitas vezes estão encobertos, como pequena brasa sob uma montanha de cinzas. Evangelizar é explicitar os valores humanos escondidos no fundo dos corações, é fazer brilhar os pequenos focos do Evangelho presentes, mas não percebidos, no íntimo de cada um em forma de desejo, de anseio, de sonho, de utopia, de esperança.

As Fontes Franciscanas apresentam outros episódios em que Francisco, exercendo sua tarefa de evangelizador, provocava os habitantes das cidades ao pacto de paz. Além de Bolonha, são conhecidos os casos de Arezzo (16) e de Sena (17). Mas parece que os pactos entre famílias eram constantes. A Legenda dos Três Companheiros apresenta-os como um fenômeno generalizado:

"Portanto, o homem de Deus, Francisco, subitamente transbordante do espírito dos profetas [ ... ], segundo a palavra profética, anunciava a paz, pregava a salvação (cf. Is 52,7), e muitos, que por viverem na discórdia estavam distantes da salvação de Cristo, pelas salutares admoestações dele se coligavam [em aliança de paz]" (18).

A evangelização (o Evangelho) tem, portanto, força política para transformar a realidade, mesmo que ela não se identifique com a política partidária. Fique bem claro que, ao fazermos esta afirmação não queremos despolitizá-la; pelo contrário, queremos apontar exatamente onde reside sua força política transformadora.

4. A visita ao Sultão: em vez de proselitismo, uma proposta de paz (tolerância religiosa, tolerância com o diferente, tolerância com outras culturas)
Em vários textos, desde a Primeira Vida escrita por Tomás de Celano (1 Cel) até Fioretti, encontramos o relato da ida de Francisco ao Sultão dos sarracenos (l9). Além desses textos, existe documentação em outros textos, que não estão incluídos nas nossas Fontes Franciscanas e Clarianas: Bernardo Tesoureiro, História de Eráclio, Crônica da Dinamarca. Portanto, parece fora de dúvida que Francisco tenha ido, de fato, fazer uma visita ao Sultão. Além de algumas diferenças de detalhes nas diversas redações, o enfoque também varia. Por exemplo, na redação de Atos e de Fioretti, a introdução de uma mulher que tentava seduzir Francisco destaca a castidade heróica de Francisco. A recusa de presentes é uma constante. Todos afirmam também que Francisco se dirigiu ao Sultão para convertê-lo à fé cristã. Por isso, no final das narrativas permanece um sabor amargo de fracasso, um certo desapontamento. Alguns tentam disfarçar esse fracasso, acrescentando que o Sultão pediu que Francisco rezasse por ele para que ele abraçasse a verdadeira fé. Outros acrescentam até a conversão milagrosa do sultão por intercessão de Francisco (20).

Preferimos uma outra leitura dos fatos. Pelo que deduzimos da evangelização desenvolvida por Francisco, que levava o povo em guerra a pactos de paz, a intenção dele ao visitar o Sultão deve ter tido essa finalidade concreta: Uma proposta de paz que ele fazia em nome não dos reis do Ocidente Cristão, nem mesmo do papa, mas em nome do Evangelho. Evangelização, sem dúvida, mas de maneira muito concreta, na forma de uma proposta de paz. Sem intenções de proselitismo. Sem a intenção primeira do martírio, embora Francisco tivesse a coragem de enfrentar também o martírio.

De sua parte, os biógrafos contemporâneos de Francisco não podiam ter outra ótica, a não ser a do proselitismo e a do martírio. Converter o Sultão, converter os muçulmanos ao cristianismo, ou melhor, ao regime de cristandade, teria sido a grande meta de Francisco. Quanto ao desejo do martírio, criou-se uma mentalidade entre os cristãos de que o sarraceno, além de ser o inimigo da fé, era também o ser mais cruel sobre a face da terra, pronto a degolar o cristão pelo simples fato de ser cristão. Na mente do povo cristão criou-se uma verdadeira neurose de guerra contra os sarracenos. Matar o sarraceno era ser herói de Cristo; morrer nas mãos do sarraceno era ser martirizado por Cristo. Toda a Europa respirava este ar.

Mas as circunstâncias levam-nos a deduzir que a meta concreta que Francisco queria atingir era um tratado de paz, como já havia feito em algumas cidades e entre algumas facções por onde ele passava. O que deve ter causado grande admiração em Francisco era o fato de toda a cristandade estar envolvida numa guerra. E ninguém, nem da Igreja nem dos governos da Europa, propunha uma alternativa. Parafraseando o que Francisco disse a respeito da inimizade entre o bispo e o podestà de Assis, ele deve ter pensado a respeito da inimizade entre cristãos e sarracenos: "É grande vergonha para nós, servos de Deus, que ninguém se intrometa para tratar da paz e concórdia com eles" (21).

A atitude de não proselitismo comporta acima de tudo tolerância para com outras religiões. No fundo, é aceitar que o outro seja diferente, pense diferentemente e possa agir diferentemente. Ser diferente não é defeito. O fato de ser diferente não coloca ninguém sobre ou sob os outros. Isto é a base para qualquer diálogo, ecumênico, inter-religioso, intercultural. O diálogo cria laços.

Consta em todos os relatos que o Sultão e Francisco estreitaram entre si laços de estima, respeito e amizade.

5. A saudação da paz (fraternidade) - construir a paz a partir das pequenas coisas
No Testamento, Francisco faz alusão à saudação da paz como algo revelado por Deus. Note-se que a saudação da paz já consta no texto do envio. A Compilação de Assis narra um episódio interessante:
" ... nos primórdios da religião, quando o bem-aventurado Francisco andava com um irmão que foi um dos doze primeiros irmãos, esse irmão saudava os homens e as mulheres pelo caminho e aqueles que estavam nos campos, dizendo: 'O Senhor vos dê a paz' (cf. Nm 6,26; 2Ts 3,16). E porque os homens ainda não haviam ouvido tal tipo de saudação ser dita por religioso algum, disto muito se admiravam. Mais ainda, alguns homens, quase com indignação, lhes diziam: 'o que lhe significa esta saudação (cf. Lc 1,29)?'. De modo que aquele irmão começou a envergonhar-se muito disso. Por isso, disse ao bem-aventurado Francisco: 'Deixa-me, irmão, dizer outra saudação'. Disse-lhe o bem-aventurado Francisco: 'Deixa-os falarem, porque não percebem o que vem de Deus (cf. 1 Cor 2,14). Mas não te envergonhes disso, porque te digo, irmão, que os nobres e príncipes deste mundo ainda mostrarão reverência a ti e aos outros irmãos por este gênero de saudação" (22).

Francisco está convencido de que a saudação da paz ainda vai fazer com que os príncipes e nobres deste mundo fiquem admirados. Ele crê na grandeza e eficácia desta saudação. No início, aquele irmão não entendeu bem o sentido dela, sentiu vergonha de usá-la, pediu para trocar a saudação. Francisco insistiu nela.

E nós nos perguntamos: "Por que essa insistência de Francisco na pequena saudação?".

Embora Francisco não tivesse tido os conhecimentos da Psicologia moderna desenvolvida a partir de Freud com a "descoberta" do inconsciente, ele mostra uma intuição psicológica muito profunda. Ele conhece o valor formativo da repetição. A repetição age no inconsciente. A repetição de uma palavra ou gesto acaba criando o chamado hábito que, por sua vez, vai como que fornecendo seiva para a vida espiritual. Isto acaba criando uma mentalidade, um modo de pensar, um modo de agir, um modo de ser. Talvez Francisco não tivesse conhecido o provérbio como nós o formulamos hoje: "Água mole em pedra dura tanto bate até que fura". Mas o dinamismo é o mesmo. É a força das coisas pequenas que acabam criando algo grandioso. Usando positivamente a comparação da gota de água, é como as gotas da chuva que nas cavernas formam o estalagmite e o estalactite, criando verdadeiras obras de arte, não de repente num piscar de olhos, mas ao longo dos dias, dos anos e dos séculos. Desse modo, a saudação é capaz de estabelecer relações de amizade, de fraternidade. Começamos a pensar como amigos daqueles que nos desejam paz. Sentimo-nos irmãos deles. E, se nos sentimos amigos e irmãos, a paz já começa a ser construída.

Talvez um erro nosso, de homens modernos, seja o de não acreditarmos na força das coisas pequenas. Precisamos logo de coisas grandiosas, de preferência de coisas ou de eventos que resultem em sucesso internacional. O dia-a-dia, o tijolo por tijolo (como na construção das grandes catedrais) não nos atrai. Somos mais atraídos a fazer belíssimos discursos sobre a paz em nível nacional e internacional, mas não queremos aceitar que a vivência quotidiana da fraternidade é como a areia que entra na argamassa da construção da paz. Bastaria para nós, franciscanos e franciscanas, viver a fraternidade, para sermos construtores da paz. A fraternidade é profundamente evangelizadora. E se é evangelizadora, é proposta de paz para os outros, é convite para que todos vivam em paz, como irmãos. Isso é o reino.

Mas o homem moderno não acredita que viver em fraternidade possa ter força. O moderno precisa de atividades, preferentemente de atividades ad extra. Ele pressupõe que, quando fala de fraternidade ou de paz, ela já as possui, por isso trata de levá-las aos outros que não as possuem. Aí entra Francisco com sua pedagogia: "Assim como proc1amais a paz com a boca, assim em maior medida a tenhais nos vossos corações".

Não é por acaso que Francisco insista e dê preferência à evangelização pelo modo de vida. E Francisco era o próprio Evangelho vivo.

6. A paz entre o bispo e o podestà (dois poderes: minoridade, respeito para com o espaço do outro)
É muito conhecida a contenda entre o bispo e o podestà de Assis. As razões desta contenda não nos são dadas pelas fontes. Sabe-se, no entanto, que se criou uma situação de divisão na cidade: de um lado, os que apoiavam o bispo; de outro lado, os que apoiavam o podestà. Uma miniatura da situação da Itália dividida entre guelfos (partidários do papa) e gibelinos (partidários do imperador alemão). E cada um dos oponentes usou suas próprias armas:

"... o que então era bispo de Assis excomungou o podestà de Assis; pois que, indignado contra ele, o que era podestà mandou apregoar [com voz] forte e cuidadosamente pela cidade de Assis que nenhum homem lhe vendesse ou dele comprasse ou com ele fizesse contrato; e assim, muito se odiavam um ao outro” (23).

Embora não saibamos as causas desta inimizade ou ódio, podemos deduzir que outra coisa não pode ter sido, senão o conflito ou luta entre dois poderes. Não se trata de inimizade entre cristão e sarraceno, mas de ódio entre dois cristãos (24). O texto do Evangelho: "Os chefes das nações as mantêm sob seu poder, e os grandes, sob seu domínio. Não deve ser assim entre vós" (Mt 20,25-26) parece não ter penetrado na alma desses dois chefes cristãos.

É difícil lidar com o poder. E a maneira que Cristo propõe, uma maneira alternativa, ainda não foi suficientemente assimilada por muitos chefes cristãos (de Estado) nem por muitos chefes religiosos cristãos. A cada dia, podemos constatar a veracidade do dito: "O poder e o dinheiro corrompem" .

Ao saber disso, Francisco toma uma atitude inusitada: compõe mais uma estrofe do Cântico do Irmão Sol sobre o perdão e envia dois companheiros para cantá-la diante do bispo e do podestà. O resultado é conhecido de todos: o perdão mútuo, a volta à antiga amizade.
Francisco utiliza a música e a poesia como meios de evangelização. Instrumentos tão frágeis para fazer curvar-se a rigidez de dois homens de poder. O que é frágil Deus utiliza para confundir o que é forte, diz São Paulo na Carta aos Coríntios (cf. 1Cor 1,27). Esta é a força da minoridade.

Fazer-se menor é proposta evangélica de paz. Evangelizar e construir a paz pela minoridade é caminho natural, pois os caminhos de Deus são diferentes dos caminhos dos homens. A força de Deus manifesta-se no que é pequeno, na fragilidade, no ser menor. Muitas vezes, pensamos, como o profeta Elias, que a força da evangelização está na grandiosidade dos planos e atividades. O profeta Elias não viu o Senhor no vento forte e violento que raspava as montanhas e fendia os rochedos, nem no terremoto, nem no fogo. Quando passou a brisa suave, Elias cobriu o rosto, porque Deus estava naquele sopro tênue (cf. 1 Rs 19,11-13). Assim, quem quiser ser forte ou o maior, faça-se o mais frágil e o menor. Esta é a pedagogia de Deus: "Assim deve ser entre vós".

A música e a poesia de Francisco são os exemplos desta minoridade. Quem pensaria que uma música e uma estrofe de poesia pudessem levar os dois gigantes do poder a curvar-se um diante do outro, a chorar e a pedir perdão e a perdoar-se mutuamente, a abraçar-se como dois irmãos?

7. O lobo de Gubbio: parábola sobre a paz (o homem reconciliado, da utopia, do reino)
Uma outra historieta muito conhecida de todos é a do lobo de Gubbio (25). Embora alguns queiram dar historicidade a este episódio (em Gubbio se conta que numa escavação fora encontrada a ossada de um lobo muito grande), a nosso ver, ela deve ser compreendida sob o gênero literário que se chama parábola. Parábola significa que o que é narrado não implica necessariamente em ter acontecido historicamente, mas que contém elementos reais, contém uma verdade que se quer transmitir. Uma leitura deste episódio exige, portanto, um processo de despojamento do texto: despir o texto daquilo que é fictício, da sua roupagem literária, para se chegar ao real, à verdade que a roupagem literária quer comunicar.

Um primeiro elemento a ser destacado é que Francisco vai ao encontro do lobo (26) sem armas. A presença do lobo causou um estado permanente de medo e pânico entre a população, de maneira que todos andavam armados como se fossem para a guerra. Francisco despoja-se das armas, como que a dizer: "Não se promove a paz com as armas". Se alguém deve propor a paz, deve ir desarmado ao encontro do outro, ao encontro do diferente. Esta atitude causou grande admiração ao povo.

Segundo elemento: tendo-se encontrado com o lobo, este veio a Francisco com a boca aberta em sinal de agressividade. Francisco conversa com ele mansamente, pacificamente, sem agressão e sem violência, como menor. Diante da minoridade de Francisco, acalma-se a ferocidade do lobo. Percebendo que Francisco não tinha armas, que era menor, o lobo não viu sentido para sua agressividade, pois, na maioria das vezes, a agressividade é apenas resposta a uma agressão gratuita anteriormente recebida.

Terceiro elemento: Francisco dialoga com o lobo. O diálogo restabelece relações rompidas. E diálogo, é bom notar, é estrada de duas mãos. Francisco falava com o lobo, e o lobo falava com Francisco através de sinais (linguagem que lhe era própria). Diálogo inclui, portanto, esforço por compreender a linguagem do outro. Nesse diálogo, Francisco compreendeu que a situação de fome levava o lobo a matar. Ele leu isto na própria situação do lobo. Compreendeu que muita maldade é cometida, não porque a pessoa seja intrinsecamente má, mas por circunstâncias adversas. Mais ainda: nesse diálogo, Francisco não deixou de recriminar os erros do lobo e de exigir dele uma mudança de atitude, como também depois ele vai exigir o mesmo do povo de Gubbio.

Quarto elemento: Tratado de paz no qual se celebra o compromisso de ambas as partes. Este elemento retrata a maneira concreta de Francisco evangelizar. Evangelizar é encamar Evangelho em situações concretas. Como a situação era de guerras entre cidades e conflitos entre famílias, sua evangelização tinha como finalidade palpável os pactos de paz. Este elemento está muito bem retratado na parábola do lobo de Gubbio.

Quinto e último elemento de nossa consideração: A parábola apresenta Francisco como uma figura utópica do homem reconciliado com toda a criação. Retomando a utopia de Isaías, Francisco é apresentado como a criança que brinca com o animal selvagem, do cordeiro que come com o lobo. Aliás, esta interpretação de Francisco como homem reconciliado já se encontra na primeira biografia, em que Tomás de Celano assim se expressa: "Enfim, chamava todas as criaturas com o nome de irmão e, de maneira eminente e não experimentada por outros, percebia com agudeza as coisas ocultas do coração das criaturas, como quem já tivesse alcançado a liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (27).

Portanto, Francisco é interpretado como homem reconciliado, homem da utopia, homem do reino de Deus. A parábola tem esta significação como pano de fundo.

8. OFS: uma política da paz (a decisão pessoal que transforma a sociedade)
O movimento franciscano desdobrou-se rapidamente em três Ordens. Dentre as três Ordens, a Ordem Terceira, hoje conhecida como OFS, tem uma maneira especial de evangelizar: levar o carisma franciscano a todos os ambientes seculares. A secularidade é que dá a nota marcante e distintiva dessa Ordem.

Lamentavelmente, com a OFS aconteceu algo que não devia ter acontecido em termos de engajamento na vida secular. Ela perdeu a força de Ordem e tomou-se, em muitos lugares, uma associação de pessoas piedosas. Como Ordem, ela teve um papel muito importante nos primórdios. Ela foi uma das forças motoras de construção da paz. De fato, a história mostra que a decisão dos chamados terceiros ou terciários de não portar armas, uma decisão de nível pessoal, acabou por provocar uma mudança radical na mentalidade bélica da Idade Média. Quando cada um decide fazer a sua parte, por mais pequenina que possa parecer, algo na sociedade muda. De novo, trata-se de acreditar no pequeno, no frágil. Uma atitude frágil acrescentada a outra atitude frágil pode criar aos poucos um modo de pensar diferente. Tanto isto é verdade sobre a OFS que temos documentos em que os príncipes escreviam aos papas, pedindo que obrigasse os terceiros (terciários) a portarem armas novamente. Eles perceberam que estava acontecendo um verdadeiro desarmamento dos cidadãos. Desarmamento, gesto concreto de construção da paz; decisão pessoal que ajudou a criar toda uma mentalidade de paz.

A OFS, como Ordem franciscana cuja característica é a inserção na secularidade, deveria estar mais presente na vida política e social. E a partir daí ser uma presença evangelizadora e anunciadora da paz. E como é necessária uma presença evangelizadora nesses setores da sociedade! Seria um modo de estar constantemente denunciando a corrupção, o descaso pelo bem comum, o desapreço pela vida dos cidadãos, mormente pela vida dos pobres.

A política partidária é lugar da OFS, pois ela é secular. E sua missão é evangelizar os partidos em vista de um serviço mais evangélico à sociedade, preferencialmente aos pobres.

Conclusão
Santo Antônio afirmava que os pregadores (evangelizadores) são os pés da Igreja. Esperar-se-ia que eles fossem a boca da Igreja. Possivelmente, Antônio se baseou no texto de Isaías: "Como são belos, sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz, do que proclama boas novas e anuncia a salvação, do que diz a Sião: O teu Deus reina" (Is 52,7; cf. Na 2,1). Então, surge a pergunta: Por que os pés e não a boca? Por que também Isaías faz referência aos pés do mensageiro? Porque, para que alguém seja evangelizador, é necessário usar os pés. São os pés que lhe permitem percorrer todos os cantos e recantos das cidades, aldeias e vilas. Aquele que evangeliza, anunciando a paz, não pode estar estático (stabilitas loci), com os pés amarrados, parado num só lugar, mas ir ao encontro das pessoas para transmitir-lhes a mensagem. Não pode esperar que as pessoas venham ao seu encontro, mas ir ao encontro delas. Ser evangelizador (anunciador da paz) implica dinamismo, mobilidade, itinerância (28). Elementos básicos do modo de ser franciscano - segundo nosso parecer - a serem profeticamente resgatados. Na linha da itinerância e da mobilidade dos pés estaria a direção da busca de novas formas de presença evangelizadora por parte dos seguidores de Francisco.
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1. Cf. 1Cel 22
2. 1Cel 23, 1.5-8.
3. AP 8,6-9, 1.
4. Para LTC 33,1, os outros dois foram para outra direção
5. Cf AP 15,9.
6. AP 18,3; cf. LTC 36,2.
7. cf. AP 19,6; cf. LTC 37,5.
8. 1 Cel 29, 3. É interessante notar que o AP coloca a pregação propriamente dita de Francisco somente após a aprovação da regra; cf. AP 36,8; cf. LTC 54,1.
9. RnB Prol., 2.
10. AP 38,7; cf. LTC 58,4.
11. RB 3,10-14.
12. 2Cel 146,1-2.4.7.
13. RnB 16,6.
14. Uma interpretação, aliás, que precisa de maior estudo e aprofundamento, pois entre cristãos e sarracenos havia, inclusive, grandes atividades comerciais.
15. Tm B, 14.
16. 2Cel 108.
17. AtF 11.
18. LTC 26,5.
19. 1Cel 57; LM 9,7-8; AtF 27; Fior 24; TM A,7; A,9; TM B,1,c p. 1426; B,5.
20. AtF 27; Fior 24.
21. Cf. CA 84,4
22. CA 101, 16-22
23. CA 84,1-2
24. O podestà teria sido o pai de Inês, dama pobre que foi a décima testemunha no Processo de canonização de santa Clara.
25. cf. AtF 23; Fior 21.
26. Lobo, na parábola, é o símbolo do diferente que ameaça o ser humano; por isso, a tentação de eliminar o diferente ameaçador.
27. 1Cel 81,5
28. Na Igreja São Francisco na Pampulha, em Belo Horizonte, o famoso pintor Cândido Portinari retratou o santo com pés grandes; uma possível interpretação é a que vê em Francisco o evangelizador, o homem do caminho, o homo viator, peregrino e itinerante.

Texto publicado na “Revista Franciscana”, FFB, 2005, volume V

sábado, 26 de setembro de 2009

Celebrar São Francisco de Assis

O Dia do santo da Paz, da Ecologia, dos Pobres, deve ser um dia para assumir ou renovar nossos compromissos com a defesa da vida.

A Festa de São Francisco merece o mais belo hino de louvor. As criaturas nos convidam a louvar e bendizer o Deus criador e defensor da vida. E a realidade socioambiental nos desafia a transformar nosso hino de louvor em gestos concretos, exemplos que mobilizem e que desperte o ânimo da humanidade. São Francisco de Assis precisa estar presente na liturgia da vida. Pois, a melhor forma celebrarmos esta festa, para além do dia 4 de outubro, é ser presença franciscana no mundo de hoje. Ou seja, atualizar o carisma, o ideal de São Francisco.

O Dia do santo da Paz, da Ecologia, dos Pobres, deve ser um dia para assumir ou renovar nossos compromissos com a defesa da vida. Não temos o direito de celebrar ou falar em Francisco de Assis, se não assumirmos a atualidade de seu carisma e ideal de vida. Nossa identidade franciscana deve ter a força da minoridade sincera e da pobreza coerente, com a capacidade de envolver o mundo na defesa e promoção da Justiça, Paz e Ecologia.

Por isso, o SEJUPE – Serviço de Justiça, Paz e Ecologia – da Província Capuchinha do Rio Grande do Sul convida a todos a encontrar uma forma diferente para celebrar a festa de São Francisco de Assis. Nosso santo quer estar nos santuários vivos, como queria que seu convento fosse o mundo. Ele quer caminhar entre os pobres e ser sinal de esperança. Quer poder celebrar com todas as criaturas os louvores ao Deus da vida. Francisco quer cantar seu hino revigorando as criaturas destruídas e degradadas pela ambição humana. Ele quer de volta a pureza da água, do ar, a saúde da mãe e irmã Terra e de todas as suas formas de vida.

Nesta festa de São Francisco de Assis não basta entoar o Cântico das Criaturas, é preciso preservar o hino que brotou do coração ecológico de Francisco. Cantar como e com São Francisco, significa preservar a natureza, respeitar a ordem natural criada por Deus. E igualmente, respeitar a dignidade humana que é dom de Deus.

O convite do SEJUPE é para que façamos algo a mais, além das celebrações, um gesto concreto na comunidade, realizando alguma obra de caráter socioambiental, de defesa da vida, de preservação da natureza (fontes, matas nativas, banhados e etc). Que seja um sinal visível que represente um chamado às pessoas. Que seja uma atividade que continue acontecendo e motivando as pessoas a agirem conjuntamente. Vale a criatividade, a sensibilidade de perceber as emergências da vida hoje.

Boa Festa de São Francisco de Assis.

SEJUPE – Serviço de Justiça, Paz e Ecologia – Capuchinhos RS

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Porto Alegre : Grupo de Estudos das Fontes Franciscanas

Em Porto Alegre (RS) há um
Grupo de Estudos das Fontes Franciscanas,
sob a assessoria do Frei Dorvalino Fassini, OFM,
que reune-se uma vez por mês
das 09h às 11h30min
na Igreja São Francisco de Assis
-- Rua São Luís, esquina com
Rua Domingos Crescêncio --.

Os próximos encontros serão:

  • 04 out., domingo
  • 08 nov., domingo

Os encontros são abertos para todos os interessados,
apareçam!

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

ORAÇÃO PARA ALCANÇAR O PERDÃO




















ORAÇÃO PARA ALCANÇAR O PERDÃO

Senhor, dói demais a dor de pecar...
Ou de ver o pecado nosso e dos outros...
Dói porque o pecado é desgosto que te causamos...
Ele não passa de um engano que cometemos...
Porque o que o pecado nos oferece aqui,
é tirar o devir da nossa salvação...

Então...
De que adianta cometer qualquer ação pecaminosa?
Meu Deus!
As ações pecaminosas são tão venenosas
que ficam gravadas em nossas almas
como prova de nosso desvario...
Dá arrepio só em pensar nos males que já cometi,
agindo como um infeliz...
que ignora o peso que os pecados têm...

Senhor, quanta vezes já te pedi perdão?
Quantas vezes caí nos mesmos erros?
Sabe Senhor,
creio que falta humildade na minha oração...
Creio que falta ainda assumir
a entrega a Ti de todo o meu ser...
sem deixar nenhum espaço...
para o ranço do pecado
que insiste em não ceder...

Ó Senhor,
às vezes me canso de lutar contra mim mesmo...
Porque sei que contigo não há segredos...
Porque nada se oculta de Tua Divina Face...
És tão maravilhoso, que sempre nos perdoas,
mesmo sem merecermos perdão algum de tua parte...
Somos tão rudes contigo, Senhor...
que nem mesmo tememos o castigo
que nos impomos quando pecamos...

Senhor...
E o pior é que sabemos
que qualquer ato pecaminoso...
tira-nos todo gozo que nos dás...
Visto que sem Ti não há paz...
Não há nada de bom...
Há somente uma estrada de sofreguidão...
Sem alento...
Sem vida...
Perdida...
Sem salvação...

Por isso, Senhor...
peço-te humildemente...
Transforma esse demente que sou...
Faz-me experimentar de tal forma o teu amor...
Que o ardor dos santos e profetas...
esteja em meu coração...
Por fim, dá-me a tua mão...
e tire-me do abismo do meu nada...
Concede-me caminhar na Tua Estrada...
Sem jamais me afastar dela...
Assim terei lugar entre os justos, teus eleitos...
que tiverem a coragem de carregar no peito e na vida
a cruz do teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo...

Paz e Bem!

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terça-feira, 22 de setembro de 2009

Itinerário da alma
















Todos nós buscamos um sentido de vida...
Ninguém vive por acaso...
Talvez até viva...
Mas, quem nunca se questionou por alguma escolha?
Creio que, de certa forma, buscamos segurança interior...
Ou quem sabe a satisfação permanente do viver...

Porém, não podemos esquecer
que o modo de ser como pomos em prática os nossos projetos...
é que define o sucesso ou o fracasso de nossas escolhas...
Por isso, quem quer que sejamos...
precisamos da inspiração divina...
Porque pra tudo na vida,
se faz jus que Deus seja o ponto de partida
e de chegada dos nossos empreendimentos...

Nenhum projeto humano tem seu fim justo
se esse fim não for à maior glória de Deus...
Porque Deus em seu silêncio e invisibilidade...
é a única realidade que fundamenta os seres que criou...
Por isso, tudo em nós tem que ser amor...
Só e unicamente amor...

Perdido está quem não faz do viver
um permanente encontro com Deus...
Experiência única em cada instante vivido...
Em cada aspiração do sentido de vida...
Como é bom sentir-nos em Deus...
Como é agradável sermos movidos por seus dons...
e termos a certeza de que sua Vontade está sendo realizada...
Verdadeiramente realizada...

Visto que, as almas conduzidas pela Vontade de Deus...
nunca se enganam...
Porque a Luz de Sua Sabedoria as ilumina...
na vida infinda de oração...
Que nada mais é do que absorção
de todas as graças que precisamos...
para sermos e fazemos somente aquilo que convém
e nos mantém na salvação eterna...

"Ó abismo de riqueza, de sabedoria e de ciência em Deus!
Quão impenetráveis são os seus juízos
e inexploráveis os seus caminhos!
Quem pode compreender o pensamento do Senhor?
Quem jamais foi o seu conselheiro?
Quem lhe deu primeiro, para que lhe seja retribuído?
Dele, por ele e para ele são todas as coisas.
A ele a glória por toda a eternidade! Amém". (Rm 11,33-36).

Paz e Bem!

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domingo, 20 de setembro de 2009

ORAÇÃO DA VIDA

ORAÇÃO DA VIDA

Senhor...
A vida que nos deste é singular...
Pois puseste tua unicidade em cada ser que criaste...
De fato, somo únicos em Ti e para Ti...

Aqui neste nosso mundo...
O nosso limite aponta para o teu Infinito...
Não viver essa dimensão da realidade...
é perder o sentido do que somos...
É apartar-se do teu encontro...
É o mesmo que ir a lugar nenhum...

Por isso, estamos no mundo...
mas não somos do mundo...
Porque somos tua "imagem e semelhança"...
"Imagem" no teu Filho Jesus que se fez carne...
"Semelhança" na alma eterna que nos destes...
Desse modo somos:
Temporais e Eternos...
Complexos e Simples...
Relativos (em nós...)
e Absolutos (em Ti...)
É assim somos nós...

Vem Senhor...
Dá-nos viver os valores eternos
que de Ti recebemos...
mas não estamos vivendo...
Pois tudo seria mais lindo...
se vivêssemos a essência do que somos...
Porque aqui tudo passa...
Mas só passa para que chegue o devir...
onde a Nova Criação nos espera...
Onde nada é quimera...
Onde verdadeiramente Ti veremos faca a face...

Senhor,
essa é a parte da herança que nos cabe...
Por levamos contigo a cruz de cada dia...
Ela é em nós sinal da tua ressurreição...
Ela é o grito de salvação que suplanta toda maldade...
Porque tudo o que é mal tem fim...
Mas todos nós que esperamos em Ti...
Parmaneceremos para sempre...
Porque Tu és o Único Bem...
O Sumo Bem...
De que precisamos...

Paz e Bem!

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sábado, 19 de setembro de 2009

A VIDA E SUAS INTERPELAÇÕES















A VIDA E SUAS INTERPELAÇÕES

Quando a vida te interpelar não fiques te lamentando ou inseguro, como é costume em nosso meio, mas busca respostas que atendam aos seus anseios. Porque quem te fala à consciência é Deus que te criou e se faz presente em todos os movimentos do teu ser. Aprende a escutá-lo no mais íntimo do teu viver, assim poderás ser conduzido por ele que te ama com amor eterno.

Eu sei que deveríamos nos questionar sempre, sobretudo no que diz respeito ao bem viver, mas não só basta pormos questões, é preciso que tenhamos respostas convincentes, capazes de nos ater seguros quanto à realidade que estamos vivendo. A vida, enquanto dom de Deus, continua a nos interpelar, seja por aquilo que empreendemos, seja por aquilo que outros empreendem; certamente na eternidade seremos, de fato, cobrados pelo muito que recebemos de Deus nesse dom.

Deus, porém, não é um fiscal carrancudo que nos diz a todo instante: “olha, vou te cobrar por isso”... Ao contrário, Ele é o nosso Pai amoroso e maior incentivador; é Ele quem nos sustenta pela mão e nos faz viver o seu Mistério, seja pela fé consciente, seja pela nossa naturalidade imatura, insegura ou coisa assim. O importante é vivermos em sua companhia amorosa, conduzidos pelas inspirações do Espírito Santo, como viveram todos santos e santas de nossa fé católica, como bem nos ensinou nossa Senhora, a Virgem mãe do Salvador: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra”.

Sabemos que vivemos em meio ao mistério da iniqüidade, pois, não é possível constatarmos tanta maldade em nosso meio e não reconhecermos que o maligno se faz presente em todas essas ações pecaminosas. Porém, a melhor maneira de combater o mal é não lhe dá ouvidos; para isso, precisamos escutar o Senhor que nos fala por meio dos Mandamentos, pelo Seu Filho Jesus Cristo e pelo exemplo de todos aqueles que viveram essa interação com o Senhor que nos dá a vida eterna.

De uma coisa temos certeza, só o bem que vem de Deus é que prevalece, porque Deus nunca esquece aqueles que o amam, por isso, os acompanha sempre nessa trajetória rumo ao Seu Reino de Amor, a Nova Criação. E quando a vida te interpelar, corre para os braços do Senhor por meio de tua oração e encontrarás as respostas de que precisas para teus anseios; assim compreenderás melhor qual é o sentido de tua vida e qual a missão que Deus te dá, para seres feliz aqui e eternamente em Sua Glória.

Paz e Bem!

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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

São Francisco e a invenção do mercado solidário

"Assim como o pensamento e a obra do franciscanismo desempenharam um papel determinante na passagem do feudalismo à modernidade, assim elas aparecem hoje na atual passagem da época da modernidade à pós-modernidade."

Essa é a opinião de Stefano Zamagni, professor de economia da Universidade de Bolonha e consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz, em artigo para o jornal dos bispos italianos, Avvenire, 11-09-2009. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o texto.

O Canto XI do Paraíso é o Canto no qual Dante se dedica ao célebre elogio a são Francisco. Precisamente em 2009 se comemora o VIII centenário da aprovação do propositum vitae franciscano por parte de Inocêncio III. Mas, além disso, o pensar franciscano está prepotentemente se tornando atual naquele âmbito específico, realmente importante, da vida associada que é a esfera econômica.

A partir do século XII se desencadeou um processo de profunda transformação da sociedade e da economia européia, que durou até a metade do século dezesseis. Iniciou na Itália, na Úmbria e na Toscana, mas, já em fins do século treze aquele processo se estendera também a outras regiões, a Flandres, à Alemanha setentrional, à França meridional. A cultura monástica foi a matriz da qual brotou o primeiro léxico econômico que se difundirá por toda a Europa da baixa Idade Média. O ora et labora de Bento não era simplesmente o caminho para a santidade individual, mas o fundamento daquilo que se afirmará como verdadeira e própria ética do trabalho, baseada no princípio da mobilidade do trabalho que já o judaísmo afirmara. A experiência do monaquismo, beneditino e cisterciense, representou por sua vez o ponto de chegada da reflexão sobre a vida econômica que já os Padres da Igreja, a partir do IV século, haviam encaminhado com vigor, submetendo a relação com os bens terrenos ao crivo da ética cristã. Bens e riquezas não eram condenados em si, mas somente se mal usados, isto é, se considerados como fim e não como instrumento. Atenção especial, para nossos fins, merece o movimento cisterciense. Sob o impulso de Bernardo de Clairvaux, tal ordem teve enorme sucesso na competição com a abadia “rival” de Cluny na Borgonha.

Os cistercienses se encontraram desde logo a ter que enfrentar duas questões de natureza econômica. A primeira se referia ao comportamento a adotar ante o trabalho. Enquanto, para os cluniacenses, a subsistência devia ser assegurada pelo trabalho das pessoas a eles submetidas – os assim ditos seculares -, os cistercienses sustentavam que era ilícito viver do fruto do trabalho alheio. De onde a recusa, seja de toda forma de renda, seja do dízimo – as duas principais fontes de entrada dos beneditinos de Cluny. A segunda questão dizia respeito ao regime de propriedade. Enquanto a regra de são Bento confiava ao abade a posse de todos os bens (individuais e coletivos) com os quais devia prover às necessidades dos monges, os cistercienses refutavam toda posse, também aquela de igrejas e altares. A Carta Caritatis, considerada a constituição cisterciense fundamental e cuja versão final remonta a 1147, é, sobre tal ponto, de uma firmeza inamovível.

Qual a consequência, certamente não desejada nem prevista, de tal duplo comportamento? Que o estilo de vida dos cistercienses, bem longe do luxo dos cluniacenses e marcado por rigor e pobreza extrema, acabou por atrair a atenção do povo que inundou de doações os seus mosteiros. Aconteceu assim que, no ciclo de poucas décadas, os seguidores de Bernardo se encontraram prisioneiros da contradição que brotava de sua própria espiritualidade: com vida sóbria (e, portanto, baixo consumo) e trabalho altamente produtivo – o superávit agrícola que conseguiam obter era superior ao realizado nas empresas tradicionais – eles haviam criado “o embaraço da riqueza”.

Tocará aos franciscanos encontrar o caminho de saída definitiva com a invenção da economia de mercado civil. Francisco, fundador de um movimento eremítico que se transformou, com um desenvolvimento fulgurante, em ordem mendicante, recebeu de Bernardo tanto o princípio segundo o qual os contemplantes devem tornar-se laborantes, como a regra pela qual os frades deviam renunciar também à propriedade comum. Tornou-se célebre a dureza com a qual Francisco apostrofava os frades ociosos, que chamava de “frades mosca” e “zangões” e a severidade com que repreendia “quem trabalhava mais com as bochechas do que com as mãos”.

Destaca-se, no entanto, num ponto fundamental: caso se queira encontrar uma saída ao excedente gerado na agricultura e no mercado, e assim obviar ao embaraço da riqueza, é preciso ampliar o espaço da atividade econômica fazendo de modo que todos possam dele participar. Ou seja, é preciso chegar às cidades onde vive a maioria da população a evangelizar, criando precisamente os mercados. (Recorde-se a insistente pergunta de Jacques Le Goff sobre por que as novas Ordens mendicantes – dominicanos e franciscanos – eram tão atraídas pelas cidades). Como Giacomo Todeschini deixou autorizadamente claro, a convicção com base na qual haveria uma inconciliabilidade insanável entre “economia de renda” e “economia de caridade”, está priva de sólido fundamento. Duas são as novidades que o franciscanismo introduziu no horizonte da época. A primeira é que, se é necessário usar dos bens e das riquezas, possuir é supérfluo. O que leva a concluir que “graças à pobreza, podia ser mais fácil usar e fazer circular a riqueza”. A segunda novidade é que, quando se quer que os frades possam exercitar com continuidade a virtude da pobreza, é necessário que esta seja sustentável, ou seja, que possa durar no tempo. Eis porque se recorre à ajuda dos leigos – amigos espirituais da Ordem – a quem confiar a gestão do dinheiro. A idéia de que alguma divisão funcional do trabalho seja necessária começa, assim, a difundir-se.

A partir de 1241, ano da primeira Exposição da Regra, a análise sobre a pobreza dos frades se estende à sociedade inteira. Os homens de cultura olham para os “conteúdos profundamente econômicos da escolha pauperista de Francisco e dos seus seguidores”, não mais apenas como caminho para a perfeição individual em sentido cristão, mas como “uma ordem econômico-social da coletividade em seu todo”. Cabe a Boaventura de Bagnoregio, Ugo de Digne e John Peckham o mérito de haver formulado o princípio segundo o qual a esfera econômica, a governativa (da civitas) e a evangélica (segundo o carisma franciscano), “são os três graus diferentes, mas integráveis de uma organização da realidade”. Se esta integração se realiza, ela gera frutos copiosos, de modo que aquilo a que os pobres voluntários renunciam pode ser empregado para os pobres não voluntários, até seu tendencial desaparecimento.

Pois bem, assim como o pensamento e a obra do franciscanismo desempenharam um papel determinante na passagem do feudalismo à modernidade, assim elas aparecem hoje na atual passagem da época da modernidade à pós-modernidade. Não há por que estranhar: quando se toma consciência da iminente crise de civilização, se é quase impelido a olhar com simpatia para a aventura humana de Francisco, para quem o início de uma nova vida, também no nível social e econômico, está em sua capacidade diversa de olhar a realidade: “O que me parecia amargo me foi convertido em doçura da alma e do corpo”. Dante foi um dos primeiros a tê-lo percebido, e é também por isso que ele merece louvor.

Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=25789 acesso em 17 set. 2009.

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